A tarde já ia tão longe que alcançava a noite. Alquebrada pela labuta semanal, resolvi saborear um café antes de entrar em casa. Fui pensando no final de semana que viria, admirando o momento em que o dia dilui-se à noite e que particularmente, me encanta como se fosse visto pela primeira vez. Deixava a mente vagar morosa, equilibrada sobre os traços dos planos que havia para o feriado prolongado, já que precisava me habituar pensar a dois.
Cheguei ao café e por sorte, minha mesa predileta estava vazia. Interpretei como um bom presságio. Analisando hoje, acredito que tenha sido realmente. Tenho uma amiga que usa uma frase - “momentos mágicos” – e é disso que falarei agora, de um momento mágico.
Cliente assídua, só precisei fazer um gesto e meu café estava materializado na minha frente. Esses rituais me agradam deveras. Mesmo antes de levar a xícara aos lábios, fui arremessa para a realidade. Quem me conhece sabe que meu pseudonimo é solidão. Gosto mesmo sem nenhum pudor, mas, não contava que nesse dia a sentiria entre minhas mãos.
O som de uma cadeira sendo arrastada, um breve pedido de desculpas e já instalado a minha frente, estava ele, o barqueiro. Talvez esteja sendo um tantinho irresponsável no uso dessa denominação, mas foi assim que me senti. Primeiro olhei para ele com um olhar talvez de reprovação, traduzido pelo sorriso amarelo que me endereçou. Mas, sei que logo que o fitei nos olhos, o meu arrependimento também se fez palpável e então ingressamos em algo que só consigo denominar como papo sem pé nem cabeça.
Não pronunciei meu consentimento, nem tive espaço para faze-lo, pois logo a seguir estava recebendo uma torrente de “elogios”- acredito que uma maneira gentil de desculpar-se pela audácia - e lhe respondendo com um certo tédio, a um questionário que pelo tempo passado, pouco me recordo:
- Uma moça de olhos melancólicos sozinha num café, vem sempre aqui? Nunca te vi?
Abro a boca e forço o som a sair: - talvez...
- Perdoe-me, mas lhe vi sozinha e como também estou solitário...
Abaixa a cabeça e se cala por um instante, tempo suficiente para que o meu desconforto se afastasse e eu esquadrinhasse sua figura. Um homem de estatura mediana, não sei precisar a idade – dos 60 aos 70 diria - cabelos castanhos claros, fios grisalhos salpicados. Bem vestido, mas barba por fazer e magro. Foi o que o tempo permitiu-me ver.
Quando me olha novamente, eu já estava com uma certa complacencia num tímido sorriso e então ele recuperou o folego numa generosa golada de café:
- Voce sabe o que é a solidão?
E antes mesmo que eu iniciasse o meu discurso sobre conhece-la, gostar, bla, bla bla, ele emendou:
- Tenho certeza que não. Mas hoje está diante de um homem que quando dorme, acorda abraçado com ela.
E suas palavras estavam vestidas pelo olhar mais dolorido que já vi na minha vida. Não era uma dor física, nem era um sofrimento proporcionado pelas mazelas vida. Mas era uma dor de quem fere a si mesmo. Um sofrimento de saudade de quem não sabe, nem mais, do que nem porque que. Meus olhos me traíram, alaguei o momento sem permitir que transbordasse. Sufoquei-o no meu melhor sorriso. Ele também sorriu, desta vez sem nenhuma cor - disfarcei me servindo de um cigarro.
Contou-me dos dias que não tinha coragem de voltar para uma casa vazia e das suas noites em bordeis baratos. Do quanto tinha que pagar para ter uma pseudo companhia e do quanto se sentia explorado, mesmo tendo que pagar alguém para se sentir ainda mais só.
Tudo isso foi sendo derramado entre nossas xícaras de café e o meu silencio por falta de palavras. Por que eu tinha que saber de tudo isso? Lembro-me do exato momento em que pela primeira vez fui tocada, de forma material, pelas mãos frias da solidão. E posso lhes garantir - não foi só meu corpo quem estremeceu:
- Posso?
Já tendo alcançado minha mão sem que eu tenha tido opção de recusa. Não posso dizer que estava calma, muito menos nervosa. Sentia-me inteiramente esvaziada!
Mas, já que tive essa chance, que fosse completa. Envolvi sua mão entre as minhas e olhando nos olhos lhe disse:
- Não sei o que lhe dizer, nem sei por que estamos aqui. Não me sinto em condições de lhe aconselhar, acredito que nem a voce nem a ninguém, como também sei que não sou a solução para suas dores - tenho apenas o calor das minhas mãos para lhe oferecer - já que fomos unidos pelo universo, alguma razão há de existir. Preciso ir embora, e quero levar desse encontro uma oportunidade à reflexão:
- Por que nos autosabotamos?
- Qual a medida certa do amor próprio?
- Como queremos chegar ao fim da linha da vida?
Antes que ele tivesse chance de réplica, esse portal foi fechado pelo som da campanhinha do meu celular dentro da bolsa. Estava confirmado que era realmente a hora de partir. Não me cabia saber as suas respostas.
Atendi o celular. Em despedida lhe estendi a mão, desta vez por vontade própria e recebi um beijo:
- Vá menina bonita dos olhos melancólicos, seja feliz, não faça a vida lhe esperar...
Saí andando como se a calçada não existisse sob meus pés. Me senti como se tivesse andando sobre águas. Fui invadida por uma serenidade que até hoje sinto quando me lembro desse episódio, mas ainda não sei como traduzir tudo isso em palavras e por isso, nunca havia contado a ninguém.
Fico às vezes pensando sobre nossas escolhas, são tantos os caminhos. Depois desse dia incorporei mais um ditado a minha vida: não há caminho certo, seja qual for a minha escolha, tenho a obrigação de chegar bem ao seu final.
Bem, se “ainda” estou viva - Um brinde aos meus tropeços e aplausos às minhas conquistas...e assim...entendo que isso seja felicidade.