Não se dera conta de quanto tempo passara ali, mas ao sair na rua a tarde já caía. O frio acentuava a melancolia e sua angustia aumentava. Sabia que precisava ser rápido, algo dentro de si, dizia, que a urdidura do tempo entrelaçava as tramas se fechando num tecido espesso, e logo a noite cobriria tudo, numa única desolação.
Chegou nos aposentos, as pessoas em volta do leito, silenciosamente se afastaram. Passou a mão nervosamente no volume que trazia sob o paletó, todo homem necessita de uma boa espada no momento do embate final. Mais confiante, chegou aos pés da cama, a viu inteira. Suas retinas contraíram-se, quase querendo saltar-lhe de órbita. Sentiu uma dor, como jamais imaginou sentir. Sobre a cama, coberta de alvo linho, estava Ela. Uma camisola fina de cambraia lhe cingia um corpo descarnado, esparramadas madeixas sobre o travesseiro, adornavam, aquela face que nas suas lembranças lhe transportavam a um oásis, sempre úmido, um sorriso de mil sois; queria ter podido aspirar seu perfume de tamaras maduras, como outrora. Mas agora, apenas um deserto sem vento, ressequido de emoções. E os olhos, aquelas janelas de céu estrelado, encontravam-se sepulcralmente cerrados.
Contornou a cama e bem de mansinho, quase como uma pluma, pousou o corpo. Ela se mexeu, como se soubesse que era ele e aninhou-se no seu peito, como sempre fizera. Uma gata que ronrona no colo do dono. Acreditou te-la visto esboçar um sorriso. Fechou os olhos por um momento e também sorriu. Um sorriso de guerreiro na volta ao lar, no aconchego familiar, quase um merecido descanso depois de batalhas. Como pode viver tanto tempo longe, suspirou. Mas o volume no bolso do paletó o acordou do devaneio; embora soubesse que precisava agir com urgência, ainda não havia decidido. Abriu os olhos e avistou sobre a mesa da cabeceira uma folha de papel. A tinta ainda molhada, não impediu que lesse e se decidisse.
E então, ela abriu os olhos e se olharam encortinados em véu de lagrimas. Não havia palavras que coubessem em suas bocas, por isso, apenas roçaram os lábios demoradamente.
Ele então a afastou com todo cuidado e retirou do paletó os dois frascos, destampou-os, um a um, depositando-os sobre a mesa, pela primeira vez lhe falou: pegue o seu.
Ela não vacilou, pegou o verde olhando-o com ar de curiosidade.
Horas depois, estranhando o silencio, as pessoas foram olhar o aposento. Encontraram os dois abraçados, como se estivessem dormindo o sono dos amantes – dois frascos vazios caídos no chão, e entre eles uma folha de papel borrada com digitais ao redor:
Ah por que ainda escrevo?
Escrevo não só por que ainda existo
Mas porque todos os dias me visto
Pela manha com os bordados da esperança
Insisto em fazer dessa casa vazia que sou Eu
O ninho que um dia, lá pelo meio dia
Tu regressarás
E então me ponho a preparar o alimento
Sustento destas paredes que deixastes
Com fome de sentimentos
E a tarde, com a força do meu amar
Lavo cada aposento com minhas lágrimas
Saudade cristalina
Que jorra da fonte do meu pesar
Do poço dos meus lamentos
E neste papel em branco que hoje somos nós
Não desisto,
Todos as noites aqui desenho o meu desejo
Que um dia
Ao menos
Tu me leias e diga:
Ela sempre foi a minha Poesia!